O Dom

O ser humano tem características que são aprendidas a partir do processo de socialização. Seu primeiro molde vem da família. Esta é a "prima matéria" para o desenvolvimento humano.

Por prima matéria entendemos a fonte de onde tudo principiou, a origem daquilo que denominamos vida.

A vida passa pela família, mas sua origem transcende ao próprio grupo. Ela vem de muito longe e contém algo de mistério, que podemos nos aproximar, sem, no entanto, tocá-lo de fato.

Assim como a vida, existe algo no ser humano que expressa alguma coisa de essencial no desenrolar do seu ciclo na Terra. Funciona por ciclos e tem sua origem na manifestação da expressão da consciência. A isto chamamos de personalidade.

A personalidade humana é objeto de estudo na psicologia, na sociologia, na filosofia e nas mais diversas formas de busca do conhecimento humano, desde o princípio da humanidade, e expressa a ação do homem dentro de um contexto grupal, coletivo, familiar, cultural, social, filosófico e psicológico.

Jung (Carl Gustav Jung) afirma: "A personalidade já existe em germe na criança, mas só se desenvolverá aos poucos por meio da vida e no decurso da vida. Sem determinação, inteireza e maturidade não há personalidade".

Ainda usando algumas afirmações junguianas temos que: "Personalidade é a realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo em particular. Personalidade é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo isto aliado à máxima liberdade de decisão própria".

A personalidade se desenvolve no decorrer da vida, a partir de sementes, cuja interpretação é difícil ou até impossível; somente pela nossa ação é que se torna manifesto quem somos de verdade.

A criança desenvolve interesses, aptidões, habilidades a partir da convivência e das oportunidades que lhe são oferecidas. No entanto desde muito cedo se percebe expressões que são próprias daquele ser. Expressões que revelam algo de fundamental, essencial e significativo do ser. Isto tem correlação com a expressão do arquétipo do Self, que abarca a verdadeira identidade do indivíduo. São potencialidades que moram no centro do indivíduo e que possibilitam o contato do ser com a sua razão de existir.

A essas expressões podemos chamar de dom.

O dom está diretamente relacionado com este arquétipo que denominamos de Self ou arquétipo central, que indica a totalidade daquilo que mora no mais profundo do nosso ser, da essência de nossa individualidade e que se expressa através de símbolos ao longo da vida. É como uma memória que temos dentro de nós, que podemos acessar e trazer a sua resultante para a ação e indica o nosso estágio evolutivo dentro do desenvolvimento da humanidade.

A este processo descrito no parágrafo anterior damos o nome de Individuação. Esse processo representa o desenvolvimento da consciência que sai de um estado primitivo de identidade e vai se ampliando ao longo da vida de um espírito.

Jung afirma sobre individuação: "É o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. É uma necessidade natural".

Um dom pode ser identificado desde muito cedo e estimulado para que possa se desenvolver, dando força para a expressão do indivíduo, dando-lhe a oportunidade de expressar-se  na sua totalidade. Por outro lado quando o dom não é identificado pode ser traduzido na vida adulta por insatisfação, apesar da conquista do sucesso.

Isto se dá porque a pessoa sente-se incompleta com a realização de seu potencial. É como se algo dentro dela estivesse reprimido, inconsciente e latente. Existem diversos símbolos pelos quais o Self se manifesta expressando assim o dom que está guardado no seu íntimo, pois o desenvolvimento da personalidade está intimamente ligado à elaboração dos símbolos que se apresentam no decorrer do processo de crescimento.

Um símbolo elaborado significa um conteúdo psíquico integrado à consciência. Os símbolos funcionam como fatores estruturantes da personalidade e surgem do Self numa mediação junto a consciência.

A respeito da consciência temos a seguinte definição: "A consciência não se cria a si mesma; emana de profundezas desconhecidas. Desperta gradualmente na infância e durante toda a vida desperta, a cada manhã, das profundezas do sono, surgindo de uma condição inconsciente. É como uma criança que nasce diariamente do ventre primordial do inconsciente. Não é apenas influenciada pelo inconsciente, mas emerge dele continuamente, sob forma de inumeráveis ideias espontâneas e de repentinos lampejos de pensamento". (Jung)

Considerando que esse despertar gradual rumo à consciência faz parte de um ciclo maior ligado a história da humanidade, é natural que elementos comuns se façam presentes. A esses elementos semelhantes que acompanham tanto o desenvolvimento pessoal como coletivo, damos o nome de arquétipos ou imagem primordial. É como se representasse "uma forma típica fundamental de certa experiência psíquica que sempre retorna... Os arquétipos são formas de apreensão, e todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não o seu caráter mitológico". (Jung)

Como arquétipo da totalidade, o Self abarca o inconsciente e o consciente de um indivíduo e suas manifestações são através dos mitos e lendas. É um princípio unificador dentro da psique humana, ocupando a posição central de autoridade com relação à vida psicológica e, portanto, do destino do indivíduo. (Dicionário Crítico de Análise Junguiana – Andrew Samuels et outros) Os mitos são formas primitivas, antigas de relato de acontecimentos ocorridos no tempo primordial e sempre dizem respeito a uma representação coletiva transmitida através de várias gerações e que traz em si uma explicação do mundo, onde uma realidade passou a existir, seja ela total ou parcial. Formam inúmeras interconexões psíquicas no desenvolvimento da personalidade humana.

Eles condensam experiências vividas repetidamente durante milênios, experiências típicas pelas quais passaram e ainda passam os humanos. Por isso temas idênticos são encontrados nos lugares mais distantes e mais diversos.

Encontramos a interpretação ético-psicológica de Paul Diel, onde "as figuras mais significativas da mitologia grega representam, cada uma, uma função da psique e as relações entre elas exprimem a vida psíquica dos homens, divididas entre as tendências opostas que vão da sublimação à perversão: o espírito é chamado de Zeus; a harmonia dos desejos, Apolo; a inspiração intuitiva, Palas Atena; o reflexo, Hades, etc. O elã evolutivo (o desejo essencial) encontra-se representado pelo herói; a situação de conflito da psique humana, pelo combate contra os monstros da perversão. Todas as constelações, sublimes ou perversas, do psiquismo, são assim suscetíveis de encontrar sua formulação figurada e sua explicação simbolicamente verídica com o auxílio do simbolismo da vitória ou a derrota de tal ou tal herói em seu combate contra tal e tal monstro de significação determinada e determinável".

O mito encarna o ideal de todo ser humano: a conquista da própria individualidade.

Este ideal no ser humano pode ser correlacionado, principalmente na fase da vida representada pelo  momento da escolha de uma profissão ou uma carreira. O símbolo que contempla este momento pode ser chamado de Mito do Herói.

Para Junito Brandão, etimologicamente, herói poderia significar aquele que guarda, conserva, defende, vela sobre, é útil, donde herói seria o guardião, o defensor, o que nasceu para servir.

Podemos pensar servir ao quê? Acompanhando o raciocínio podemos considerar o que em nós reside desde o princípio de nossa existência – o dom. Assim como no mito do herói, o ser humano no seu processo evolutivo se apóia em sacrifícios, oferendas e ritos.

Na mitologia, o herói é via de regra representado por um guerreiro, onde segundo alguns autores lhe daria características de lutador, adivinho ou profeta, sem, no entanto, ter direito ao exercício do sacerdócio ou da realeza. Neste sentido, representaria e simbolizaria a força pura, a qual, desprovida de inteligência e animada de paixão, teria que ser dirigida pela autoridade espiritual.

Parece-nos que nesse sentido, o homem encontraria seu espelho, na medida de sua origem divina (espírito) e sua origem humana (matéria) e sua tarefa consistiria em unir o céu e a terra, atingindo assim a sua totalidade. Na filosofia chinesa o símbolo da união estaria representado através do yang e yin e a totalidade o Tao.

O herói é essencialmente um arquétipo, que nasceu para suprir muitas de nossas deficiências psíquicas e obedece ao mesmo perfil e modelo nas mais diferentes culturas. É o precursor arquetípico da humanidade em geral, representa, portanto, uma figura da psique coletiva, sendo sua trajetória seguida pela humanidade, de tal forma que os estágios do mito heróico façam parte do desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo.

Ele representa, de acordo com Lutz Muller. "o modelo do homem criativo, que tem coragem para ser fiel a si mesmo, aos seus desejos, fantasias e às suas próprias concepções de valor. Ele se atreve a viver a vida, em vez de fugir dela. Ele supera o profundo medo diante do estranho, do desconhecido e do novo. Trilha caminhos que, por um lado, tememos, mas que, por outro, percorreríamos prazerosamente em segredo: caminhos em esferas ocultas e proibidas do ser de difícil acesso: trata-se aí de países estrangeiros ou galáxias distantes, de fenômenos naturais incompreensíveis ou da escuridão da nossa alma. À medida que ele não se deixa desviar do seu propósito pelas advertências de outros homens, nem pelos seus próprios medos e sentimentos de culpa, mantendo-se aberto e disposto a aprender, capaz de suportar conflitos, frustrações, solidão e rejeição, ele adquire novos conhecimentos e realiza ações que possuem uma força transformadora, não apenas em relação a ele, mas também à sociedade. Ele representa características fundamentais de que precisamos para o domínio da vida e o embate criativo com a nossa existência. Seu caminho é o caminho da auto-realização".

A todo este desenrolar do crescimento humano damos o nome de Biografia, onde a máxima é a expressão do próprio dom, para fazer aquilo a que viemos determinados pelo destino, numa perspectiva de cumprimento da missão essencial que mora dentro do nosso ser espiritual que se revela através de nossa ação no mundo.

O trabalhar servindo o dom que reside no interior de cada um de nós, significa lapidar esta essência, através do nosso desenvolvimento, fazendo com que possamos nos tornar um talento naquilo que realizamos na trajetória da vida.

Portanto o talento pode ser considerado como a expressão da lapidação do dom inato dentro de cada indivíduo.

Nesta dimensão temos a realização do ser humano que concretiza aquilo que está ajustado a sua missão e expressa suas potencialidades de forma tranquila, porém sem exclusão da luta, marcada no ciclo do herói, que tem como demanda vencer os obstáculos através das peripécias na saga rumo a conquista da totalidade de sua personalidade. ...